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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Amargo Degradê

Amargo Degradê


Sempre que podiam prolongavam ao máximo o tempo em que poderiam desfrutar um da companhia do outro. Ainda assim sempre ficavam com aquele sentimento de frustação quando se separavam. Quando se despediam, já estavam com saudades um do outro, contando as horas para que no dia seguinte pudessem se reencontrar.

Veio então a viagem dos pais de Sonja, iriam passar uma semana na Europa e contrataram uma governanta para manter a casa em ordem na ausência deles. Sonja nos seus dezoito anos não precisava realmente de uma babá, mas deixa-la sozinha tanto tempo era dar chances para arrependimentos futuros. Seus pais sabiam que há meses vinha namorando um rapaz, e dentro do possível mantinham-na à vista.

Tinham uma casa de campo onde em algumas ocasiões passavam uma temporada. Era uma mansão, como todas as residências daquela região. Era aconchegante quando havia clima para isso, com uma ampla área verde de quintal, vários quartos, piscina e todo conforto interno que a vida moderna pode propiciar. No entanto, sozinha com sua governanta naquele lugar, a situação era deprimente e Sonja tratou de combinar com Henrique uma forma de se encontrarem por lá durante esse período.

Sua governanta, uma senhora de idade avançada, era zelosa e atenciosa com suas obrigações. Mas não resistia acordada após o término da novela das 22 h.

Sonja contando com o “apagão” da governanta, estava animada e intimamente já havia reservado um dos quartos para a estadia de Henrique. Reserva essa apenas do conhecimento dos dois, a governanta a senhora Amália não iria em nenhum momento se importar com os demais quartos da mansão.

Estava tudo combinado, Henrique anotou o endereço, arrumou sua mochila, verificou se não estava esquecendo algum item essencial; -“escova de dentes, perfume, camisinhas, filmadora”, ia conferindo- e ligou em seguida para Sonja confirmando que chegaria lá no início da tarde do dia seguinte.

Sonja fora com seus pais naquele mesmo dia. Após verificarem que a mansão estava em perfeitas condições e darem os últimos conselhos, seguiram viajem rumo ao aeroporto, voariam em poucas horas.

Só havia uma companhia que atendia àquela região, e talvez mesmo por isso; sem concorrência, não disponibilizavam muitos horários por dia para o público que precisasse se deslocar até lá. Apenas dois ônibus por dia, e Henrique mofava na rodoviária pelo horário da partida. Ia chegar mais tarde do que planejara, mas não havia opção. Estava decidido a não se chatear por pequenos contra tempos.

Um pouco mais de três horas de viagem e parecia que estava em outro país. O cenário completamente diferente fora de imediato notado por Henrique. Uma vegetação fechada margeava a estrada já há vários quilômetros, eram raras as edificações visíveis, distando uma das outras em vários quilômetros. Naquele momento Henrique percebera que poderia ter problemas.

Ao chegar percebeu que tivera motivos para se preocupar, a parada era em uma pequena praça, nada de taxis ou outras linhas de ônibus disponíveis. Os poucos passageiros que haviam entrado com ele no início da viagem, foram descendo durante o transcorrer da mesma. Naquele ponto apenas restava ele e o motorista; tentou obter informações com ele, mas o mesmo sabia apenas o trajeto de ida e vinda, não ia além desse caminho, e após fazer uma pequena pausa para um café, enquanto dava tempo das pernas descasaram um pouco, volveu pelo mesmo caminho. O barulho do ônibus se afastando deixou Henrique desolado, por onde iria agora?

Súbito naquele silêncio a que fora deixado, o ruído de uma carroça se fez ouvir. Seguia um pouco mais acima, conduzida por um senhor idoso que devia apresentar algum nível de surdez, pois Henrique mesmo gritando não se fazia ouvir, teve de correr e se por à vista do condutor para que este parasse a carroça e lhe desse atenção.

Estava com sorte! O senhor conhecia bem aquela região, e lhe deu uma carona, até certo ponto iam no mesmo sentido. Aos gritos Henrique perguntava um pouco mais sobre a região; era a única forma de ser ouvido, e contente por saber agora como chegar à mansão de Sonja sentiu-se mais aliviado. Poderia mesmo relaxar e curtir a pequena viagem, não fosse o forte cheiro que vinha da carga transportada pela carroça. Havia uma lona que cobria o que quer que fosse, mas o odor forte que emanava da carga oculta dava a entender que era algum tipo de animal morto; um porco, um bode, mas nada que tirasse Henrique do bom humor, devia faltar pouco para chegar e era tudo o que queria.

Seguiram por quase uma hora naquele ritmo lento e chacoalhante. Então a carroça parou e com uma voz fraca da idade o cocheiro indicou que ali deveriam se separar; e assim o fizeram. Henrique tomou o pequeno caminho de terra à direita enquanto a carroça seu condutor e a velha mula continuaram em frente. Embora já houvessem se separados há vários minutos e o caminho de Henrique pendesse mais e mais para a direita, se afastando cada vez mais da estrada principal, o barulho trepidante da carroça ainda se fazia ouvir, tamanho era a desolação daquela região, nenhum outro barulho se ouvia. E sem perceber, apenas seus passos, depois de certo tempo, eram os únicos a perturbarem o mais profundo dos silêncios que Henrique já presenciara em sua vida.

A escuridão era total, Henrique havia alcançado o fim daquele caminho, estando agora diante de uma bifurcação sem a menor sinalização.

-Puta merda! –xingou consternado- E agora por onde vou? A porra do velho nem pra me dizer isso, que merda! –sentia-se perdido e precisava decidir logo por qual direção seguir.

Sua paciência já tinha lhe abandonado, mosquitos à sua volta pareciam não ter uma refeição há dias e então o estrondo de um trovão anunciou com poucos segundos de antecedência a iminente chuva que despencaria. – “Devia ser um eminente filho da puta para merecer isso!”- Pensou.

Decidira-se pelo caminho da esquerda, torcia para que estivesse certo e que não houvesse mais transversais a escolher. Nunca gostou de se molhar na chuva, mas pelo menos agora os mosquitos não o perturbavam mais. Melhor assim; além de um resfriado e de uma possível assadura na virilha, não ficaria todo encaroçado e com coceiras por todo o corpo. - Sonja também deveria achar o mesmo- Pensou.

Vários minutos depois, esgotado fisicamente e desejando um bom banho quente e uma cama macia onde se jogar, viu uma fraca claridade mais a frente. Tênue, camuflada pela vegetação que se interpunha, mas definitivamente era proveniente de uma lâmpada. Apressou o passo, abandonou o caminho em que seguia e traspassou uma densa muralha de mato que se interpunha em seu caminho. No escuro e ávido por chegar à soleira daquela edificação, ia se cortando pelo contato do mato com a sua pele e desta com a vegetação espinhenta no seu caminho. Sobrepujou esses obstáculos com determinação, e ofegante parou diante de uma velha e enferrujada grade que bloqueava a porta à sua frente.

Por ter vindo pelo mato, chegara à mansão pelos fundos. Então Henrique contornou a mansão pela lateral esquerda dirigindo-se à sua porta de entrada.

-Que fim do mundo Sonja foi arrumar pra passar estes dias! É um milagre que tenha energia elétrica, duvido que haja cobertura para celulares! – “Nem papai Noel deve ter coragem de aparecer por aqui.” – Pensou com ironia.

Já devia passar da meia-noite, Sonja e sua governanta já devem estar dormindo a essa hora, mas Sonja sabia que eu vinha, deve ter deixado uma chave em algum lugar aqui fora. – pensou.

Com cuidado, tentando não acordar ninguém, tateou pela chave sem sucesso. Instintivamente sua mão girou a maçaneta... e a porta estava apenas encostada. Entrou sorrateiramente, buscava encontrar um quarto onde pudesse se jogar, mas o interior da mansão era enorme, e Henrique nem sabia por onde seguir. Notou uma escadaria na parte central de uma das salas que entrara e rumou a ela. Alguns lances de degraus e estava no segundo piso defronte a um enorme corredor ladeado por inúmeras portas. Seguiu adiante, iria arriscar.

Ao toque dos seus passos o soalho rangia. Quase imperceptível, mas o suficiente para Henrique refrear seus passos, não queria ser ouvido, nem descoberto. Mas então o silêncio se rompera em um grito de pavor!

O coração de Henrique gelou, seu corpo ficou inerte, atordoado com aquele grito horrível que ecoou por toda a parte.

-Quem seria? O que estaria acontecendo? De onde vinha? – Dúvidas e receios povoaram a mente de Henrique, estava aterrorizado!

Os gritos retornaram! Agonizantes, desesperadores! Alguém, uma mulher; suplicava aos prantos, ao mesmo tempo em que seus gritos revelavam a dor a que estava sendo submetida!

Naquela mansão escura e vazia, aqueles gritos reverberavam uma áurea sinistra por todo o ambiente. A amplitude dos gritos era acentuada pela acústica daquelas salas fechadas, dando a impressão que se podia ouvi-los a quilômetros. Henrique tremia incontrolavelmente, o medo lhe paralisara por completo, sua boca seca parecia incapaz de pronunciar qualquer som.

Fortes estocadas se fizeram ouvir! Como machados golpeando um tronco... uma mesa, uma superfície qualquer de madeira! E o silêncio voltou a reinar por completo na mansão. Nada mais de prantos, de gritos. Então uma porta foi aberta com tanta força que dava a ideia da ira de quem a abrira! E então outra, e mais outra; e assim como que abrindo caminho pelas salas da mansão alguém vinha... cada vez mais se aproximava de Henrique, lívido mas que percebia a aproximação e que buscava sair daquele torpor aterrorizante.

O mesmo pavor que até então o enregelara, agora o impelira às carreiras escada abaixo! Em segundos já estava fora da mansão, e não parou de correr mais; não volveu uma única vez os olhos às suas costas. Já havia alcançado uma estrada, e se manteve correndo. O Sol já lhe batia às costas, esgotado Henrique se mantinha aos trôpegos, mas não parava. Assim se arrastando alcançou a pracinha onde desembarcara no dia anterior. Deixara-se desfalecer à sombra de um baobá.

Fora acordado pelo motorista que cobria aquela linha pela manhã. Ao descer do ônibus para tomar um pouco de chimarrão, o homem notara o corpo de Henrique pendido sobre as raízes do baobá. Suas feições cadavéricas de início assustaram o motorista, que pensou estar diante de um cadáver ali “desovado”.

Henrique agradeceu pelo chimarrão que lhe foi compartilhado. Quente, amarga, aquela bebida deu uma reanimada em Henrique. Em seguida aceitou o lanche todo do motorista, que comovido com o estado do seu único passageiro, perdera a fome por completo.

Na volta Henrique nada falara a viagem toda. Apenas queria voltar para casa, esquecer toda aquela aventura. Sonja teria que compreende-lo, ele não voltaria mais para aquelas bandas de jeito nenhum.

Menos de uma hora depois, no entanto, o ônibus parou. O motorista pediu a Henrique que aguardasse um pouco, e desceu. Minutos depois voltou acompanhado, trouxera um detetive com ele. Após relatar na delegacia aonde se dirigira o estado em que encontrara Henrique, o delegado pediu ao inspetor Santos que fosse investigar melhor o caso.

Santos estava para se aposentar, não fosse sua falta de estudo já poderia ser delegado há muitos anos. Trabalhara toda a vida naquela região e ele melhor do que ninguém para perscrutar o que quer que fosse em que Henrique estivesse metido.

O motorista temia que aquela linha pacata pudesse passar a ser rota do tráfico de drogas, era melhor cortar o mal pela raiz. Se Henrique estivesse limpo, não teria com o que se preocupar.

O inspetor Santos entrou sozinho, sentando do lado de Henrique. Se identificou e notando o aspecto acabado de Henrique teve a mesma impressão que tivera o motorista.

- Quanto mais rápido esclarecermos as coisas, melhor para nós dois. – Disse o inspetor.

Henrique o olhou nos olhos, respirou fundo algumas vezes, ajeitou-se no assento e começou a história bem pelo começo, da viagem dos pais de Sonja e dos planos que advieram depois.

Ao fim da narrativa o inspetor continuou por longo tempo fixando Henrique. Parecia agora entender os estragos que iam além dos que antes apenas os olhos haviam visto.

Ao descer do ônibus era esperado pelo delegado e por uma viatura com dois policiais, chamados na iminência de que haveria ali uma prisão; além do motorista e alguns curiosos que se acercaram do local.

-E então inspetor? – Indagou o delegado- Conseguiu a colaboração do nosso passageiro, ou vamos ter um hóspede conosco por uns dias?

O inspetor então pôs o delegado e todos ali que podiam ouvir à par da história ocorrida. O motorista desatou a gargalhar alto sem se conter com a história inventada por Henrique. Mas logo se calou diante da seriedade dos demais.

-Ah qual é? Esse cara deve ter cheirado mais do que devia! Se fizerem um exame de sangue dele vão ver que o cara curte uns cogumelos e coisas desse tipo! – Disse o motorista contra feito por não ter tido apoio na sua descrença.

O inspetor Santos resolveu então contar ao motorista uma história que poderia fazê-lo mudar de ideia.

- Quando entrei para o departamento de policia há quarenta e três anos, havia nesta região um serial killer, cujas vítimas eram esquartejadas a golpes de machado, e seus corpos aos pedaços eram empalados e deixados nesse estado no cume de uma chapada, onde apodreciam ao relento ou serviam de comida aos carniceiros que fossem atraídos pelo pútrido odor que dali emanava. Por anos caçamos esse assassino sem sucesso, sabíamos do desaparecimento das vítimas, mas seus corpos nunca eram encontrados. Buscas eram feitas nos arredores onde as vítimas eram vistas antes de sumirem; e nada, nunca uma única ossada fora achada. Não tínhamos suspeitos. Os anos seguiam e com eles novos desaparecimentos; mas nada de corpos.

- Então cinco anos depois do primeiro desaparecimento, uma equipe de turistas que fazia ecoturismo pelas florestas e chapadas desta região, ao acaso se depararam com as ossadas, com as estacas e um corpo ainda em decomposição; era da última vítima, cujo desaparecimento havia sido relatado apenas há dois dias. Tudo ali indicava que todos os desaparecidos tinham seus restos mortais ali despejados, com a exceção... das cabeças. Não havia um único crânio naquele cemitério a céu aberto.

- Não entendíamos como puderam ser transportados até aquele local, se a cada alarme de que alguém havia desaparecido, todos os carros eram revistados. Mas diante daquele cenário macabro, os sulcos no chão, marcados por rodas de carroça, foram a segunda grande pista que nos levou a elucidar todo o mistério.

- Um velho caquético que mal se aguentava, eximido de suspeitas, era quem transportava os corpos ocultos por lonas em sua carruagem. Ninguém se dava ao trabalho sequer de olhar para aquele pobre coitado, tinha livre circulação entre os postos de revistas.

- As investigações levaram a uma velha mansão, os rastros da carruagem a apontavam como o matadouro daquele assassino. Mais de vinte policiais cercaram o local, eu e outros cinco policiais entramos e vasculhamos a casa. Fomos surpreendidos por uma figura grotesca empunhando um machado e avançando em nossa direção. Devia ter quase dois metros de altura e exalava um cheiro de morte; mesmo a mais de vinte metros, antes de surgir no corredor marchando contra nós, seu odor já nos enojava antecipando sua presença.

_ Ordenamos que parasse, dei um tiro de advertência; ele veio inalterado na sua gana de nos atacar, com passos largos logo estaria sobre nós.

- Tudo depois foi muito rápido e quase nem tivemos como reagir de forma diferente. O velhote da carroça, vira o cerco e escutara os gritos e toda a gritaria; saiu de umas portas laterais às pressas, tentando de proteger aquela criatura, demove-la de nos atacar. Mas sua aparição fora bem entre nós e o brutamontes, no justo instante em que havíamos feito os disparos! Os dois se chocaram, as balas vararam a ambos que caíram mortos; o brutamontes sobre o velhote. Era tão pesado, que depois a autópsia revelou que o velhote morrera por traumatismo craniano e asfixia, e não pelos ferimentos das balas.

- Os crânios de todas as vítimas foram encontrados num dos cômodos, dispostos como troféus numa estante. As investigações depois esclareceram que eram pai e filho, mas ninguém na vizinhança nunca tinha visto ou sabido do filho do velhote.

- De lá pra cá, tivemos vários relatos de pessoas que afirmavam terem visto o velhote em sua carroça por estas bandas. Nunca foram levadas a sério, não haveria como! Consideramos sensacionalismo. Até... bem, até que um dia relendo as queixas mais incomuns registradas na delegacia, percebi a estranha coincidência entre todos aqueles relatos. Todos relatavam suas visões exatamente nas mesmas datas! Conferi cada um dos registros, e todas as aparições do velhote aconteciam em 27 de janeiro de cada ano; a mesma data de ontem.



- O relato desse jovem dentro do ônibus é o primeiro a incluir a possível presença do brutamontes nessa lenda. Digo possível, porque ele não chegou de fato a vê-lo; mas relatou uma presença, que dentro da lenda seria a do grandão.

-Antes de sair do ônibus, liguei para o comando aéreo e pedi que informassem qualquer coisa estranha na Chapada 6, aquela onde os corpos foram encontrados. Como eles todos os dias fazem voos nas rondas, sugeri que incluísse essa chapada na primeira ronda. Já devem ter sobrevoado por lá a estas horas.

Quando o inspetor terminou o motorista não tinha mais aquele humor inicial, seu riso debochado deu lugar a uma carraca sisuda, entrou no ônibus e disse:

- Sei que se for justificar meu atraso na rodoviária, junto ao fiscal com essa história, estou na rua! Então inspetor, se ligarem perguntando sobre algum acidente por aqui, vê se me quebra essa hein?

Henrique só queria voltar pra casa, sentia-se melhor agora. Ao ver o motorista fechar a porta e dando a partida no veículo, respirou aliviado. –“Casa! Lá vamos nós!”- Pensou. Recostou-se melhor na poltrona e ia tentar adormecer quando...

A sirene da viatura policial chamou a atenção do motorista que freou de imediato o ônibus. Pelo retrovisor pôde ver a movimentação em sua direção. Abriu a porta dianteira por onde o inspetor Santos entrou às pressas.

- Sr. Henrique! O Sr. terá que vir conosco! O Helicóptero do comando aéreo acaba de sobrevoar a Chapada 6 e confirma a presença de um corpo empalado, com partes esquartejadas ao seu redor, sem no entanto, um retorno positivo para a presença de um crânio no local. Até que esclareçamos tudo, o Sr. agora é uma testemunha do departamento de homicídios!

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cai a Chuva

Cai a Chuva


Da varanda, refastelado numa rede, olhava o movimento. Olhava o movimento que ninguém notava, ou prestava atenção. Que não parecia interessar ou despertar curiosidade a ninguém.

A chuva caía torrencialmente, forte e barulhenta. Suas gotas ao vento, como que dançavam harmoniosamente num ritmo acelerado, vigoroso, cadenciado. Uma mistura de salsa com bolero, acompanhada por vigorosas rajadas de ventos e fortes trovoadas! Os relâmpagos somavam-se a esses elementos e juntos compunham um belo espetáculo. Mas só eu o contemplava.

No balançar da rede podia sentir o frescor de algumas gotas mais finas que o vento empurrava varanda adentro. Com elas o cheiro da grama e terra molhadas me inebriava, remetendo-me às memórias dos tempos juvenis.

No colo um livro fechado, protegido dos pingos da chuva, aguardava sua hora. Era o motivo inicial de me ter ido à rede, mas fora esquecido momentaneamente, deixado de lado, num ostracismo pertinente à cena daquele dilúvio.

Dentro de casa todos faziam algo mais interessante; -pra eles- uns à frente da TV, - a maioria- outros do computador, e outro diante do vídeo game. Todos com olhos fixos em telas que lhes proporcionavam de alguma forma um entretenimento direcionado, rotineiro. Todos tão perto e ao mesmo tempo tão distantes uns dos outros.

A chuva caía agora mais forte, de alguma forma o ritmo agora era outro, as gotas trocaram o molejo latino por compassos germânicos, poderiam bem estar sendo regidas por Richard Wagner como em Cavalgada das Valquírias, uma ópera a céu aberto.

Da rede, solitário; sereno e encantado com aquele espetáculo da natureza, não podia mais ver muita coisa, a cortina d’água agora embaçava a visão poucos centímetros à frente. Apenas os vultos das árvores, com suas copas festejando o banho que removia a fuligem e outros elementos poluentes emitidos pelos homens.



Então como que pedindo a atenção que lhe era devido, e estava lhe sendo negligenciado, aquele espetáculo irrompeu em trovões contínuos e luminescentes. Em seguida o blackout total, e um muxoxo em coro viera do interior da casa.

A rede balançava ritmadamente, o cheiro da chuva fresca me envolvia e em minha mente associações a um chocolate quente começavam a se formar. Contemplava, mas agora não mais só. Todos vieram à varanda, despertos de suas hipnóticas rotinas. Desprovidos de suas telas, pareciam ter descoberto algo novo, e ali ficaram contemplando a canção da chuva.

A chuva voltou a serenar, e todos parados, apenas a olhavam, distantes. Mas não eu. Saí, e debaixo de chuva caminhei saboreando aquele frescor. Descalço, encharcado e despreocupadamente apenas caminhei.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Valores Inversos

Valores Inversos


Estávamos à saída do elevador da escola, conversando animadamente e cercados pelo ruidoso alvoroço que os demais alunos faziam pelos corredores. Terminara a aula do período matutino e a movimentação dos alunos rumo ao portão principal com saída para a rua assemelhava-se ao tráfego intenso de um formigueiro.

- E ae, você também foi convidado para a festa da Júlia? – Perguntei, enquanto procurava na mochila o celular, e seguia andando.

- Claro, se duvidar fui o primeiro. Você sabe que ela é “gamadona” por mim, né?

- Hum... É, pode ser. - Disse pensativo, refletindo na verdadeira razão por Júlia ter tanto interesse pelo meu amigo. Eu acreditava que ela era interesseira, e o fato dele ser bem de vida era o motivo dos interesses dela. – E você? “Caidaço” na dela?

- Você tá me “zuando”!? – Riu-se ele, com cara de deboche. –Cara, vou só curtir, nada sério.

Júlia não era uma garota das mais bonitas, nem das mais populares. Mas era o tipo gostosa, que qualquer cara sempre estaria cobiçando. Estilo patricinha, não se misturava muito, sempre cercada pelas mesmas amigas, que ostentavam mais do que realmente tinham. Loira e com lindos olhos azuis, evitava se relacionar amistosamente com a maioria dos alunos; mesmo os da sala dela.

Confesso que mesmo sendo assediado por algumas meninas, - algumas mesmo mais belas do que Júlia- era por ela que minha cabeça girava. Suas futilidades me incomodavam, era frívola em seus valores e mesmo assim de forma ilógica não a tirava dos meus pensamentos.

Houve umas ocasiões em que cheguei a nutrir esperanças de que pudesse vir a ter algo entre nós. Um pressentimento, que como o vento se dissipava tão logo havia se formado.

Meu amigo era muito popular na escola, mas não por suas notas; rodara ano passado, e transferido por seus pais para cá, que apostavam na minha companhia para motiva-lo a estudar. Conforme íamos andando, era assediado principalmente por algumas meninas, e sempre saudava cordialmente a todos.

Oh, acho que ela tem uma queda por você também, - disse ele. – Já a peguei te olhando umas vezes. Porque você não chega junto?

- Pode ser... Ela simpatiza comigo, mas... Não sou do tipo dela, você entende né?

- Cara você é certinho! Não chega a ser um nerd, nem cdf, mas acho que ela só ficaria contigo se fosse pra casarem! – Disse ele, rindo e me dando um empurrão no ombro esquerdo. – O lance é curtir, ficar, sem pressão!

O agito era total na festa. O som alto com um DJ mandando ver e a pista de dança lotada, a animação era geral! Não faltavam bebidas, e as garotas pareciam em maior número.

Assim foi por toda a noite. Estendeu-se madrugada afora e via-se de tudo ao redor. Uns caídos pelos cantos, bêbados, outros em “amassos” quase pornôs. Havia gente nua na piscina e não faltava o forte cheiro de álcool e vômito por toda a parte.

Era hora de ”puxar o barco”, já tinha curtido o suficiente por aquela noite; ficara com cinco meninas e nem mesmo soube o nome delas, bebí além da minha cota de segurança e rí a ficar com dores no abdômen. Não fazia sentido me despedir, estavam todos “altos” demais para se darem a essas formalidades. Apenas me retirei.

Nem mesmo me daria ao trabalho de procurar pelo meu amigo, ele de certo seria um dos últimos a sair; isso se saísse. Julia não largou do pé dele a festa toda, tentando acompanha-lo em tudo que fazia. Como podia ser tão patética?

Na última vez que o vi, estava urinando numas das paredes da cozinha. – Cadê a Júlia? – Perguntei, enquanto ele se esforçava em manter o equilíbrio e molhava tudo ao redor.

- Ahh! Ela não quis se aliviar aqui – disse às gargalhadas- foi no banheiro, tá “chapadona”!

Atravessei a sala de jantar para sair pelos fundos, passei à porta de um quarto que ficava no corredor e à vista da porta escancarada e do barulho que veio do seu interior, parei por uns segundos.

Em meu retorno solitário para casa, a visão que tivera naqueles poucos segundos que olhei para dentro do quarto, ainda martelava em minha mente. Se por um lado chocante, por outra libertadora.

Eu sempre me perguntava como poderia gostar de Julia? Ela diferia de mim em tudo; modos, valores morais, ética, caráter, etc. E mesmo assim não a tirava da cabeça, não havia como. Por vezes achei que estivesse enfeitiçado ou com alguma obsessão compulsiva, que precisaria de ajuda para tira-la dos meus pensamentos.

Vê-la nua na cama, bêbada, sendo usada por cinco homens foi no entanto o suficiente para curar-me definitivamente.

Nos dias seguintes tudo voltou ao normal, e não se falava outra coisa na escola que não da dita festa. Já estavam planejando quando fariam a próxima, e na casa de quem seria desta vez.

Para Julia as coisas não voltaram simplesmente ao normal. Sua performance era um dos temas mais destacado quando se falavam das loucuras que rolou na festa. O vídeo feito por três celulares e que circulava na rede internacional de computadores desfazia qualquer dúvida sobre a veracidade dessa história.

Ela que nunca prezara as verdadeiras amizades, sempre se cercando a outras pessoas por interesses mesquinhos, e tentando chamar a atenção a todo custo, enfim parece ter conseguido o que sempre quisera. Era a mais falada da escola, da cidade, com repercussão internacional e os caras mais “boas pinta” da escola passaram a rodeá-la feito abutres.

Desejo Contido


Quantas vezes você desejou algo, e ficou apenas no desejo? Sonhou e não obteve? Até onde vai o limite entre o que desejamos e o que obtemos? Existe alguma fórmula, que pudesse nos propiciar o alcance desses objetivos?

É frustrante planejar um fim de semana por meses, e nunca de fato conseguir organiza-lo. Coisas mais simples por vezes nos levam a mesma frustação; um livro que nos programamos para lê-lo dentro de um prazo, e nos vemos estendidos dias ou meses além desse prazo. Uma manutenção em casa; uma pintura da parede, reorganização dos móveis, troca de uma telha ou outra qualquer que seja, que nunca levamos a cabo.

Se desejamos tais coisas porque elas simplesmente não acontecem?

Preguiça, falta de recursos financeiros, falta de tempo, condições climáticas, etc.

Justificativas não faltam, e algumas delas, senão a maioria, terão mesmo forte apelo para eximir-nos do insucesso!

Acredito que a questão toda esteja permeada no quão forte desejamos a mudança.

O princípio que adoto é que no momento que passamos a desejar a mudança, conquista; o fazemos porque cremos que o podemos realizar! Estamos cientes de que temos condições para tal! De outra forma estaríamos falando de insensatez, e não é este o caso de que falo aqui.

Pretensões irreais; embora possíveis dentro do universo estatístico, como conhecer um marciano, ficar bilionário em um ano, se casar com uma celebridade que nunca antes havia ouvido falar de você, entre outras, necessitariam de uma outra abordagem.

Mas das que vinha falando acima, daquelas que de fato temos todas as ferramentas para executa-las, e ainda assim nunca as realizamos ou pelo menos não no tempo programado.

Dessas podemos refletir o porquê dos resultados magros, da teimosia em procrastina-los.

Cada pessoa deveria refletir, por exemplo, porque não concluiu a leitura daquele livro em duas semanas, se esse era um prazo mais do que suficiente para tal. Seria o primeiro passo!

Essa análise iria nos confrontar com nossa consciência das metas e do desrespeito em cumpri-las. Caso percebêssemos que a meta seria na verdade uma daquelas ditas acimas como irreais, então novamente estaríamos fora deste escopo. Mas se as metas estiverem corretas, se os desejos forem saudáveis então a questão é: O quanto realmente desejamos isso?

Existem os desejos supérfluos, aqueles que você é impelido a tê-los, mas que em condições outras você abriria mão deles. Como quando você vai ao mercado fazer compras, e está sem comer nada há algumas horas. Isso – a fome, e suas implicações orgânicas e psíquicas – irá direciona-lo a comprar mais do que inicialmente desejava. Nesse caso torça para estar sem o cartão de crédito na carteira.

Mas dos desejos legítimos, que realmente necessitamos e que os concluímos muito tempo depois, ainda que esperássemos tê-los realizados antes, ou que em alguns casos nunca o concluímos, – das situações a pior – desses devemos nos impor a responsabilidade de reparar nosso fracasso em atendê-los.

A sugestão que dou é que não apenas queira, não apenas deseje. Mas acima de tudo determine-se a esse propósito!

A chave é a determinação!

Desejar sem ter a determinação mínima é como entrar em devaneios, ou estar na verdade tentando realizar o desejo de outros, e não os seus!

Observe, por exemplo, uma mulher acima do peso e com a silhueta esférica. Salvo alguns casos orgânicos, como disfunções endócrinas, psíquicas entre outras, a aparência dessa mulher reflete o estilo de vida que ela leva!

Gostar de doces, chocolates e de pouca atividade física é uma opção! As pessoas têm o direito de serem felizes ao seu modo.

Acontece que confrontados com o estereótipo social, essas pessoas acabam desejando coisas que na verdade não fazem parte daquilo que lhes proporciona prazer. Passam a buscar privações alimentares e a se forçarem a atividades físicas, não porque seria uma prática mais saudável, mas porque fisicamente querem se encaixar nas expectativas sociais!

Passam a desejar o desejo dos outros!

Nesse caso entram em um conflito entre aquilo que lhes proporciona prazer e bem estar, com o que devem fazer parar agradar às expectativas de uma sociedade focada na beleza plástica, na cultura dos corpos sarados.

Esse conflito entre o que nos dá prazer, e o que desejamos; queremos, resulta na maioria dos casos a favor do nos dá prazer. Resulta disso o fracasso em atender aos desejos planejados.

Tudo que desejamos visa satisfazer as nossas necessidades. Portanto saiba quais são as suas! Não as dos outros!

Com determinação sobre as suas necessidades, você notará como seus desejos passarão a se concluírem dentro; ou antes, das datas previstas!

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Guerra Fria

Passara aquela semana toda imerso nos estudos, revendo aberturas e treinando táticas e finais. Minha preparação nunca estava satisfatória, sempre me cobrava mais e mais, era mesmo difícil saber quando parar. Muitas vezes só o fazia por intermédio de minha mãe, me chamando à mesa para uma das refeições, ou por que já estava caindo de sono.


A preparação se devia ao confronto ao qual me depararia na manhã seguinte. Meu adversário tinha um saldo de uma vitória sobre mim, isso em cinco partidas já realizadas entre nós. Todas as outras ficaram em meros empates.

Naquela noite titubeei entre me estender mais algumas horas noite afora ou ir mais cedo para a cama e descansar o máximo possível para a batalha que enfrentaria. Optei pela segurança, não queria que a falta de concentração me levasse à lona, nem que o cansaço me tirasse a energia necessária para um final longo, mas vencedor.

O local escolhido para o embate foi a biblioteca do colégio, onde o silêncio era mantido por regras e pela presença de Dona Julieta, que era rígida em manter tudo dentro do regulamento. A mesa central fora reservada com antecedência e o número de pessoas à sua volta já dava a ideia da importância da luta que estava prestes a se iniciar.

Meu café da manhã havia sido leve; cereais, uma vitamina de mamão com maçã e uma fatia de pão integral besuntado em mel. Saíra satisfeito da mesa e rumei a pé pelas ruas ao colégio, caminhando com um olhar distante, vago. Naquele momento me espirito já havia se adiantado e estava sentado na mesa central da biblioteca, refletindo sobre os principais pontos que não poderiam ser esquecidos durante a partida.

Fisicamente ao caminhar naquela manhã, eu o fazia como se fosse um zumbi, marchando compassivamente, alheio a tudo ao meu redor. As casas, as pessoas pelas quais eu ia passando nesse ínterim eram meros vultos, sem som ou cor. Eu estava longe, não poderia mesmo notar o que quer que estivesse à minha volta.

Meu adversário era membro de um clube da cidade, acostumado a torneios, contava com o apoio de um professor que o vinha instruindo já há alguns meses. Seus resultados não eram os melhores, ele tinha o estilo do Tigran Petrosian, o rei dos empates, e assim se por um lado tinha poucas vitórias, por outro, tinha menos derrotas ainda.

Lá estava ele sentado ao tabuleiro à minha espera e confabulando com seu técnico; o professor que sempre lhe assistia. Ambos verificavam o relógio e acertavam seus ponteiros. As planilhas de anotação já se encontravam sobre a mesa.

Ao entrar, meu espirito juntou-se a mim numa recepção digna de reis. Então me vi novamente ciente dos meus modos sociais, cordialmente cumprimentei a todos, e sentei-me à mesa após apertar a mão do meu adversário.

O sorteio me deu as brancas! Eu conhecia um pouco do repertório do meu adversário, sabia o que iria jogar e antes mesmo de mover a primeira peça, já estava torcendo para que ele entrasse em algumas linhas de algumas de suas partidas anteriores. Minha preparação caseira poderia me dar uma vantagem já na abertura se alguns dos erros que ele cometera antes não tiverem sido corrigidos.

As peças no tabuleiro iam uma após outra movendo-se dentro do esperado, seguindo a teoria das aberturas, sem a necessidade de muita reflexão de nenhuma das partes. Em alguns lances, houve uma hesitação; que variante seguir?

Por um lado, havia uma variante em que poderia leva-lo a tentar seguir como o fizera há poucos meses num torneio estadual. Se ele assim o fizesse, incorreria no mesmo erro e não teria a mesma sorte. Naquela altura vencera a partida contra um adversário mais forte. Mas a análise posterior da partida mostrou-me como aproveitar com vantagem da posição resultante da continuação que ele escolhera.

Por outro lado, aquela posição só se dera devido a um movimento fraco que seu adversário fizera um lance antes. E se eu propositadamente jogasse o mesmo lance fraco, na esperança de que ele incorresse na mesma continuação e ele desta vez conhecesse a melhor continuação?

Eu sabia o que jogar; ao menos qual seria o melhor lance na posição. Mas psicologicamente a escolha seria por um lance mais fraco.

Nessa dúvida, fiquei por minutos a fio em cogitações, ponderações e análises que me amparassem a buscar pelo menos um empate caso ele respondesse corretamente ao meu lance psicologicamente correto, mas as continuações vislumbradas não me agradaram.

Eu poderia transformar um erro antigo do meu adversário no fator que o levaria à vitória desta vez. Porque teria eu de jogar um lance fraco para tentar a sorte? O certo seria esperar que ele jogasse um lance fraco, e então tirar proveito. Até que ponto deveria trocar o certo pelo duvidoso?

Enveredei então pela linha correta, dei continuidade à partida e observei discretamente as reações do meu oponente. Ele demonstrou que esperava por outro lance, suas feições eram de intrigado frente a uma nova situação. Mas não creditei confiança na sua interpretação; quanto de dramaticidade teatral haveria naquele semblante? Pura encenação? Bem possível!

Decidi que não erraria à custa de ser castigado pela continuação correta, blefar não seria mais uma opção, deixaria isso para as partidas de pôquer.

O silêncio era ruidoso à nossa volta, os movimentos dos corpos no ambiente, o arrastar de cadeiras e até o virar de páginas da Dona Julieta eram sentidos como se estivessem numa escala muitas vezes ampliada. Uma mosca a certa altura brindou-nos com sua inoportuna presença. Todos se moveram para afasta-la da mesa; gestos de mãos de todos os lados, e vencida a mosca bateu em retirada.

Eu sentia que poderia transformar a posição numa linha vantajosa, mas não encontrava artifícios táticos que me impelissem numa direção. Deveria trabalhar estrategicamente a posição e procurar criar fraquezas para o meu adversário. Se bem sucedido, tais fraquezas permitiriam quem sabe um sacrifício ou um tema tático vitorioso. Havia sim um bem estar com o desenrolar da partida, mas se de fato era real; justificado, então deveria haver alguma fraqueza já instalada no jogo do meu adversário, mas qual?

Após seus lances ele sempre me fitava demoradamente, quem sabe para criar alguma pressão emocional, quem sabe meramente tentando ver a direção dos meus olhos, e captar dessa forma se eu teria compreendido a razão por trás do seu lance.

Eu retribuía ao meu modo, mantendo os olhos numa direção enquanto investigava o outro lado do tabuleiro, - gravado em imagem perfeita em minha mente- era como se dissesse a ele:

– Vou mover alguma peça deste setor! –

E assim o punha a calcular as possíveis respostas aos meus lances mais prováveis, o entretinha em cálculos por determinado tempo, até que por fim olhava na real direção em que havia estado analisando por vários minutos; transparecia meditar sobre a posição e logo depois movia nesse setor uma peça.

As peças velavam intenções e ideias, e politicamente negociavam espaço e influência. Minhas intenções não eram as de um diplomata, mas muito menos as de um bárbaro. Me via como um general comandando suas tropas, não com o fim de poupa-las; mas de leva-las à vitória! Mesmo que à custa de muitas vidas.

O relógio implacável, frio e imparcial era também um elemento crucial na partida. Não obstante a necessidade da correta condução das peças, se fazia igualmente necessária a maestria na administração do tempo. Era como um vício, uma dependência; quanto menos o tínhamos mais necessitávamos.

Mas o tempo não pára, e naquela partida não foi diferente. Embora eu não pudesse irromper em desfechos brilhantes que me conduzissem á vitória, pude no entanto calcar lance a lance vantagens posicionais que fizeram meu adversário passar a consumir mais tempo em suas jogadas. Com isso eu tinha mais uma vantagem, o relógio a meu favor. Com cerca de vinte minutos a mais no tempo, resolvi buscar complicações antes que o lance pelo controle de tempo fosse alcançado. Restava ao meu adversário dez lances, que deveriam ser feitos em dez minutos, quando chegaria aos quarenta lances jogados e obteria mais tempo para prosseguir.

Complicações, eu precisava de complicações. Mas não poderia ser uma roleta russa, apenas as necessárias para ampliar minhas vantagens. Com superioridade na ala da Dama, e com um peão passado, o fato do Rei adversário estar mais exposto não me fazia dirigir as ações contra ele. Ao contrário, busquei insinuantemente manobras contra o monarca preto, apenas para melhorar minha posição na outra ala.

O final prometia ser totalmente favorável às minhas peças! Desisti de encontrar complicações, e tratei de evitar possíveis manobras de meu adversário para lograr êxito num empate.

Com a prática que tem, advindas das noitadas em que joga “pings” – blitz- em seu clube, meu adversário facilmente me superaria nesse ritmo de jogo. Mas felizmente eu tinha uma larga margem de tempo a mais, e não lhe dei esse prazer. Ainda assim ele usou de sua experiência para alcançar os quarentas lances.

Tão logo ganhara mais tempo em seu relógio, sua disposição mudou e impetuosamente buscou trocar peças! Era uma manobra simples, para diminuir minha atividade no tabuleiro, porém lógica e que poderia surtir efeito.

Estava confiante, lance após lance, pressentia a vitória, embora para muitos ao redor pudesse parecer o contrário, em virtude de estar com dois peões a menos!

Se entrasse no jogo dele e facilitasse as trocas das peças, ainda assim teria um final a meu favor, mas com um grau de dificuldade maior. Possivelmente ele equalizaria o consumo do tempo enquanto eu buscasse a conduta correta das peças. Isso era o que ele deveria supor.

O professor Adilson - de literatura- chegara para acompanhar a partida, colocando-se entre os demais espectadores e segurando numa das mãos um livro que naquele momento não pude ver a capa. Ele jogara algumas vezes comigo, era ótimo parceiro e excelente em finais. Sua mania era dar prosseguimento em partidas de GMs – Grandes Mestres- quando o jogo já se encontrava na fase final. Ele reproduzia as posições de tais partidas e se punha a jogar contra o computador. Para ele o final era a alma do jogo, quando se usa menos memória e mais raciocínio.

Bastaria uma olhada de vesgueio em sua direção, e saberia se minha confiança tinha ou não razões concretas. Não foi por acaso que ele chegara apenas naquele momento, seu interesse era apenas em acompanhar o final da partida.

Devo confessar que a técnica do professor Adilson me interessara, e já há alguns meses vinha praticando-a também. Jogando finais contra engines aprendi muito, e passei melhor a orientar minhas peças no meio do jogo.

Meu adversário não mais me encarava após seus lances, e tão logo notei essa mudança de atitude, não pude conter um sorriso maroto; discreto mas perceptível. Passei então ao revés das personagens, e passei a fita-lo demoradamente após cada lance que ia executando. Sua indiferença era apenas aparente, podia sentir seu interior se debatendo em fúria, sua fisionomia calma escondia um vulcão ativo, em vias de entrar em erupção.

Passou a jogar mais rápido, iria tentar por me no apuro do tempo? Talvez conseguisse, pois meus lances vinham arrastados em longos minutos, nas sombras de cadeias de peões, cálculos de oposição e tempos de promoções. Não queria simplesmente errar por último!

De fato a certa altura ele já tinha cinco minutos a mais e no ritmo com que vinha jogando a tendência era ampliar ainda mais essa vantagem.

Foi então que veio o sacrifício do cavalo, uma peça a menos além dos dois peões! E a marcha rumo à oitava linha se fez por ambas as alas. Rei e cavalo eram insuficientes para deter ambos os avanços, e com uma cadeia de peões inferior, a superioridade numérica de peões pretos se mostrou inútil.

Naquele momento o alvoroço reinava na biblioteca, e pude mesmo ouvir comentários sobre minha infeliz derrota, dada como certa por uns capivaras que se baseavam apenas nas peças a menos do meu lado. Ainda assim a plateia se mantinha acompanhando o desfecho da partida, Dona Julieta nunca vira tanta gente na biblioteca antes e estava um tanto perdida frente aquela situação.

Finalmente meu adversário decidiu-se por interromper aquela tortura, em quatro movimentos - deitou seu rei, levantou-se e cumprimentou-me, saindo em seguida seguido pelo seu técnico- selara o fim do clima até então reinante no local, o alvoroço fez-se instantaneamente e a notícia correu tão rápida que pouco depois lá estava o diretor do colégio, conferindo o acontecimento – um aluno seu derrotando um atleta do clube municipal- e elogiando D. Julieta pela colaboração.

Essa simples partida seria o pivô de futuras mudanças; que vieram de forma natural pouco tempo depois.

No colégio o xadrez virou disciplina escolar e o clube da cidade doou alguns livros, relógios e chess sets ao colégio. Como resultado os praticantes aumentaram; muitos buscando melhorar suas técnicas se associaram ao clube da cidade, e a adesão aos torneios promovidos pelas várias organizações cresceu exponencialmente, levando centenas de adeptos aos torneios.

Bom... agora voltarei aos treinos, hoje o tema é uma variante da siciliana, jogarei pela internet várias partidas obrigatoriamente iniciadas pelos lances que caracterizam essa abertura.

Quem sabe nos encontremos qualquer dia desses para uma partida?

domingo, 9 de janeiro de 2011

A Bola da Sorte - Parte 4

Sem Opção




O entusiasmo foi a primeira reação que esboçaram após o susto; logo veio a insegurança seguida pela incerteza e por fim estavam receosos.

Aquilo que mais queriam, que há dias vinham desejando, estava agora bem a frente deles! Depositada sobre uma das lápides, uma bola! Parecia nova; ou senão, muito bem conservada. Como teria ido lá parar? Ninguém joga bola perto do cemitério, teriam-na esquecido?

A questão agora era quem desceria lá para pega-la? Ou correriam o risco de não a encontrarem mais lá no dia seguinte.

Goiaba foi direto:

-Sozinho não vou nem a pau! – Quando empacava feito mula, não havia quem lhe convencesse do contrário.

Seu primo concordou, e sugeriu:

-Vamos todos! Descemos juntos, pegamos e voltamos. É só uma bola!

Tomaram outro forte susto quando ouviram do nada uma voz!

-Oh vocês! O que que está pegando aí? – era Preto, que passando notou a turma aos cochichos sobre a árvore, e resolveu se juntar-Também tô nessa, tô subindo!

Quando o puseram à parte das intenções, Preto se arrependeu da ideia que teve em se juntar à turma, agora não tinha outra opção senão encarar a missão.

Dos galhos em que estavam para o alto do muro era manobra fácil, e logo estavam todos de pé sobre o muro, andando em direção a uma pequena estátua, na forma de um anjo deitado, que lhes serviria de degrau, ajudando-os na passagem do muro para o interior do cemitério.

A visão daquele ângulo era bem diferente, tinham menor alcance visual e nem mesmo sabiam direito onde a bola estaria. Do alto da árvore contemplavam uma região bem ampla, lá de dentro, - embaixo- os túmulos, mausoléus, estátuas dentre outros obstáculos, lhes impediam de olhar mais do que alguns poucos metros em qualquer direção.

Resolveram se separar, assim procurariam em mais lugares ao mesmo tempo, e poderiam sair logo dalí.

Goiaba e Zé tomaram o corredor da direita; Dunga e Potter o da esquerda, sobrando a Preto caminhar no corredor à sua frente.

Poucos minutos se dera desde que se separaram, quando um gato preto assustado com a súbita presença de Goiaba e de Zé, debandou às pressas! – não sem antes soltar um forte miado de susto- chocando-se mais a frente com um pequeno vaso de vidro.

Preto que não se sentia nada corajoso em andar àquela hora da noite num cemitério sozinho, procurava andar sem fazer barulho com os pés, quase não respirava direito, - a quem estaria ele evitando despertar a atenção?- e então um vulto preto se moveu à sua direita, ele não teve tempo de ver que era apenas um gato. O bichano estava correndo e naquela escuridão passava por uma sombra fugaz.

Não bastasse ter tido a impressão de ter visto um vulto, o barulho do vaso se quebrando logo em seguida, fez desaparecer a cor da sua face. Sua tez ficara branca e aos berros se pôs a correr desfreadamente aos gritos!

Seus gritos gelaram o sangue dos demais, ainda em suas buscas pela bola!

Goiaba quase teve uma congestão! Sentiu como se alguns quilos das goiabas em processo de digestão fossem reverter sua marchar e saíssem em golfadas goela à fora! Cerrou os dentes e apertou os lábios para garantir que o vômito não viesse à tona!

Zé por sua vez nem tomara nota da agonia do primo; disparara a correr corredor à direita!

Enquanto Preto já estava descendo pela goiabeira sem olhar para trás, foi a vez de Dunga e Potter se assustarem com um vulto que vinha em sua direção! Os dois arregalaram os olhos e soltaram um grito de pavor, se pondo logo em seguida a correr desesperados pelos corredores entre as lápides.

Era apenas o pobre do Zé, que felizmente os reconhecera, e pôs-se a correr atrás deles! Mas estava tão assustado que não conseguia gritar ou pronunciar som algum, sua garganta estava seca e emudecera completamente pelo pavor que sentia naquele momento.

Sentindo-se seguidos, Dunga e Potter quase alçaram voo, tão rápido estavam! Nem mais olhavam direito para onde iam, em sua fuga foram quebrados alguns vasos, lápides pisoteadas e por fim se viram no interior de um mausoléu; sem saída, presos e com seu algoz perseguidor prestes a lhes pôr as mãos encima – ou algo pior.

Instintivamente se abaixaram, e torceram para escapar. Seus corações no entanto parecia soar forte feito um tambor! Estavam agachados atrás do túmulo central do mausoléu, quando notaram os passos que os perseguiam pararem à entrada do mausoléu!

Era no entanto apenas o sem fôlego do Zé! – sem voz, e sem cor.

Na tentativa de se anunciar, Zé piorou ainda mais as coisas! Sua voz fraca, imperceptível, quase inaudível, fôra forçada tentado se fazer ouvir. O resultado foi desastroso! Um som gutural saiu de sua boca, sequer parecia um som humano. Detrás do túmulo e em desespero, tentando se salvarem de qualquer forma, Dunga e Potter emergiram violentamente em direção à entrada e com os braços à frente dos rostos atropelaram o coitado do Zé!

Os três como resultado do choque, estavam agora caídos no chão; olhos arregalados a se olharem uns aos outros, mudos e respirando com muita dificuldade.

Demorou, mas se recompuseram e trataram de procurar a saída. A bola não parecia mais valer tanto à pena. Lembraram-se que Goiaba devia estar ainda no cemitério, mas poderia também já ter-se ido, como saberiam? Não iriam ficar para descobrir.

No retorno porém deram sorte, deparando-se com a bola a poucos metros deles. Sobre um túmulo muito bem cuidado. Ainda lhes restavam um pouco de coragem, eram só uns poucos passos...

A surpresa foi grande quando viram o nome exibido na lápide! Ali jaziam os restos mortais do famoso Pipoca! O maior artilheiro do futebol brasileiro e tido como o inigualável, aquele que jamais seria superado por nenhum outro, tamanha era sua superioridade em vários aspectos técnicos.

Pipoca conquistara todos os grandes campeonatos que disputara, - Copa do Mundo, Mundial de Clubes, Brasileiro, -sem contar nos vários títulos Estaduais que o Vasco da Gama; clube que representou por toda a vida, conquistara por anos seguidos- recebera os mais valiosos prémios e condecorações que um jogador poderia receber. Exímio armador, lançava a bola com precisão “cirúrgica”, e criava as jogadas do time como se fosse um artista, um maestro em campo! Nas conclusões era o “Impiedoso”! Guardava sempre a bola nos fundos da rede, por mais que os goleiros adversários se esforçassem, ou mesmo clamassem por milagres; não havia choro que impedisse Pipoca de concluir sempre suas finalizações em gols! Quando ele partia em direção ao gol, toda a arquibancada se levantava, anteviam o que viria, alguns já se punha a gritar gol mesmo segundos antes do craque chutar a bola.

Ficaram boquiabertos! Atônitos encarando a lápide que lhes revelava a importância daquele túmulo. Por alguns instantes haviam mesmo se esquecido da bola, quando Dunga falou:

- Essa bola... deve ser presente, oferenda de fã. Não vou pegar ela não, pode ter maldição nisso! Tipo aquelas histórias das múmias egípcias! Eu não pego!

Zé que havia recuperado a voz, engoliu seco e lançou um furtivo olhar de esguelha à Potter; que não o encarou. Então pôs-se diante da bola e disse:

- Vamos no sorteio! Quem perder pega a bola, e não vale voltar atrás! – Dito isso fixou os olhos em Dunga que ainda relutava em ir contra seus temores.

Foram para o zerinho ou um; forma simples que usavam até para decidir quem escolheria os times, quem ficaria de fora do time ou outros impasses. Não tinham opção!

Os três juntos em uníssono – Zerinho ou Um!

(Continua)

sábado, 8 de janeiro de 2011

A Bola da Sorte - Parte 3

Sombras do Medo




Estavam já há dois dias sem jogar bola, e não se entenderam em fazer uma vaquinha para comprar uma bola nova. A situação era preocupante, Faísca cogitara em vender umas cópias de CD, com alguns dos seus jogos mais novos. Mas ainda não teriam o suficiente.

A providência lhes vinha a caminho; embora por um tortuoso caminho, mas prestes a atender às suas necessidades.

No ócio daquele dia, Goiaba estava prestes a fazer o que lhe fizera jus ao apelido; subir numa goiabeira e se empanturrar até cansar de comer goiabas.

Com ele estavam Zé, Dunga e Potter; todos ávidos pelas goiabas. Eram como lagartas; comiam todas! Mesmo as verdes! Iam até os galhos mais altos se preciso fosse, não faziam estoques; iam pegando e comendo, e nesse ritmo só paravam quando se cansavam. Mas geralmente bem antes disso as goiabeiras já estavam sem uma única fruta.

A goiabeira ficava na rua detrás do cemitério, e alguns galhos acima tinha-se a vista interna do mesmo. A visão era assustadora e os meninos procuravam “limpar” os galhos o mais rápido possível. Não queriam estar ainda sobre ela quando caísse a tarde. Histórias diversas sobre aquele cemitério eram conhecidas por todos; passadas de gerações em gerações e revitalizadas de tempos em tempos com novos casos.

Dunga comentou sobre Hipólito, o menino que desaparecera sem nunca mais ser encontrado, após ter entrado naquele cemitério numa noite. Conta-se que o garoto corria atrás de uma pipa que caíra lá dentro.

Potter lembrou então da Dona Amália, que ficara louca após terem-na esquecido trancada dentro do cemitério. Ela havia se perdido; primeiro nas suas orações, e depois em achar o caminho de volta à entrada do lugar. Na manhã seguinte acharam-na feito um zumbi, a esmo, perambulando entre as covas, sem rumo e não dizendo coisa com coisa.

Zé lembrou do caso do Geremias; um mendigo que fôra enterrado como indulgente, e que assombrou várias pessoas durante semanas! Conta-se que pedia sua cabeça de volta aos visitantes do cemitério. Foi necessário a mulher do delegado chegar num certo dia em casa tremendo e branca feito cera, para que se fosse investigar a história toda. Desenterraram o defunto e descobriram que haviam mesmo lhe roubado a cabeça. As investigações apontaram para a universidade da cidade, onde recuperaram o crânio do Geremias num laboratório de medicina legal.

Iam comendo, conversando e distraídos se esqueceram da hora! Foi quando um gato preto passou a frente deles sobre o muro do cemitério, que despertaram para a escuridão que já se formava.

Resolveram interromper a comilança e descer de imediato. Foi quando Potter avistou algo!

- Caraca! Olhem Lá! – Gritou Potter apontando para dentro do cemitério. Seus olhos arregalados e fixos indicavam de forma mais precisa, do que o seu trêmulo dedo indicador tentava faze-lo.

O olhar dos demais encontraram-se no mesmo ponto; o apontando por Potter! E como hipnotizados ficaram por alguns segundos até que a gritaria foi total.

(Continua)

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A Bola da Sorte - Parte 2



Sem a Gorducha


O campo de terra batida onde preferiam jogar estava uma lama pura. Optaram por jogar no beco dos gatos; local geralmente repleto de sacos de lixo e reduto dos gatos do bairro, que usavam o beco como lar, protegidos da chuva e do Sol; tinham ainda farto suprimento de comida, era só rasgarem os sacos de lixo e se servirem.

Mas às terças o beco geralmente estava limpo. As coletas de lixo eram feitas três vezes por semana –às segundas, quartas e sextas à noite- e os moradores costumavam por seus sacos de lixos para fora apenas poucas horas antes da coleta ser feita. Isso reduzia os danos que os gatos causavam aos sacos, e a sujeira advinda desse “vandalismo”.

As traves ficavam encostadas na parede. Era só move-las e fixa-las nos sulcos cavados no chão para esse propósito, e sempre zelados para sua serventia. Em minutos o campo estava pronto, era só começarem a jogar.

Estavam animados! A partida ainda sem gols seguia disputada, com chances reais mas não convertidas para cada lado. Embora fosse uma partida entre eles mesmos, jogavam concentrados, sabiam que precisariam de todo treino e entrosamento que pudessem ter até o começo do Intercolegiais.

Contavam agora com a presença de Preto, Faísca, Dunga, Potter e Goiaba - ultimamente vinham se dedicando mais aos confrontos por vídeo-games, mas o apelo do torneio os reuniu novamente- todos vizinhos e da mesma escola. Havia também o primo do Goiaba, o Zé - era o único “estrangeiro” do time; morava em outro bairro e estudava em outro colégio.

O Zé não poderia jogar no Intercolegiais pelo time, mesmo assim treinava com o grupo; era o outro goleiro.

Preto após uma jogada de corpo se livrou da primeira marcação, e após tabelar com Potter recebeu; driblou, e emendou um “bicaço”, direto pro gol!

A bola bateu forte no ângulo direito de Passos, que se esticara todo; mas incapaz de voar não pôde senão dar um pequeno toque com as pontas dos dedos na bola. Suficiente para desviar a bola contra a trave!

Fez-se um estrondo enorme! A bola ao colidir com a trave acertara em cheio uns dos pregos usados para prender a rede à trave. A bola estourou na hora! O jogo havia terminado.

Preto se desculpou, embora não tivesse tido culpa alguma.

- A bola já não era aquela coisa, os caras botam os pregos pra frente da trave, tavam pedindo por isso – Desabafou.

O problema é que era a única bola que tinham! Como iriam poder treinar de agora em diante? Além disso, cada time era obrigado a levar uma bola em cada partida do Intercolegiais, o que fariam?

(Continua)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A Bola da Sorte

A Turma



Eram vizinhos a mais de anos; não tantos, o mais velho dos garotos devia ter uns 14 anos, e mesmo assim na hora da pelada era sempre aquele alvoroço.

Quem escolhe os times? Com a bola de quem vão jogar ? Pode ou não jogar calçado ? Essas dentre outras questões estavam sempre em pauta e nunca definitivamente eram resolvidas. No fundo fazia parte do cerimonial, e pular esse bafafá todo seria impensável.

Carlos era da torcida por quórum insuficiente, quando então não havia outra opção de escolha e ele podia jogar, do contrário era sempre o gandula. Outra situação era não haver quem quisesse ficar no gol, quando ele acabava sendo escolhido mesmo no início das seleções dos times.

Naquele dia seria diferente, não havia outra bola disponível, a única era uma “meia-boca”, semi-descosturada que Carlos encontrara dias atrás. E o dono da bola nunca ficava de fora, tendo mesmo em algumas situações a prerrogativa de ser um dos capitães e direito a selecionar um dos times.

Franco era o craque da rua, habilidoso e fome de bola por natureza, sempre a primeira opção quando se escolhia os times. Mas o tanto que tinha de técnica com o domínio de bola, não tinha nos momentos das conclusões, era mesmo um expert em perder gols cara a cara com o goleiro.

Clóvis o magricela era estabanado, seus movimentos desengonçados faziam dele uma figura patética em campo, sua marca registrada era a falta de habilidade. Caneladas à parte, era no entanto quem melhor pontaria tinha ; o artilheiro da rua. A explicação podia ser pelo fato que enquanto os outros meninos passavam seu tempo praticando controle, embaixadinhas e dribles, Clóvis gostava de chutar a bola de tudo que era distância do gol, sempre praticando faltas e cruzamentos, era a companhia costumais de Passos, o goleiro por escolha.

Passos era o mais velho do grupo, recém feitos, seus quatorze anos não refletiam seu porte que mais sugeria alguém por volta dos dezesseis. Rapaz calmo com uma timidez resolvida e só jogava se fosse no gol. Adorava sua indumentária; luvas, tornozeleiras, joelheiras e boné. Era o único que nunca jogava descalço, era isso ou ficava de fora. Sempre o aceitavam com as chuteiras.

Henrique era o falador do time, mais falava do que jogava. Mas sempre se achava com a razão, e era o reclamador oficial da turma.

- Passa a bola ! Lança lança ! Rápido tô livre ! Aqui vai vai manda !- Era o vocabulário típico de Henrique, partida após partida.

Esse gênio era o responsável por quase sempre haverem farpas entre Henrique e Franco. Henrique se martirizava toda vez que Franco prendia a bola e tentava fazer tudo sozinho. Se perdiam, então era motivo para ouvi-lo a semana inteira a remoer a culpa que Franco teve no resultado.



A Rivalidade



No entanto dissabores à parte, tudo era dentro da quadra; se é que se pode assim chamar os campos que enjambravam. Alguns nem traves tinham, essas eram delimitadas por chinelos, camisas ou que quer que servisse a esse fim.

O que não era permitido, tolerado ou cogitado, era uma derrota pra turma da Candelária. Isso era pior do que o fim do mundo. Podiam até ficar em último lugar nos campeonatos, mas era melhor do que perder para seus rivais do bairro.

A rivalidade entre essas turmas superava a do clássico carioca Vasco e Flamengo. Dividia a rua em duas torcidas ferrenhas, formadas por amigos, pais, colegas de escola e demais moradores da rua. Era quase uma avenida.

Era também a rixa entre os dois colégios do bairro, alunos de um, não jogavam no time que os do outro colégio jogavam. A rivalidade era tanta que para não amargurar uma derrota, quase não havia partidas entre eles. E quando havia... era um clima de guerra.



O Confronto



Naquele mês, no entanto, havia o torneio Intercolegiais! Dos quais participavam os melhores times dos colégios da cidade. Ficar de fora era inaceitável, apenas jogos pela Copa do Mundo tinham importância similar.

Ambas as equipes se inscreveram; e diferente das edições anteriores, em que não se cruzaram uma única vez, nesta eles por sorteio estavam na mesma chave. E de cada chave apenas uma equipe seguiria adiante.

Não bastasse a dor de perder, que por sí só já era incomensurável, ser eliminado da competição pelo seu arqui-rival seria uma viagem ao purgatório com destino assegurado às trevas.

(Continua)