Amargo Degradê
Sempre que podiam prolongavam ao máximo o tempo em que poderiam desfrutar um da companhia do outro. Ainda assim sempre ficavam com aquele sentimento de frustação quando se separavam. Quando se despediam, já estavam com saudades um do outro, contando as horas para que no dia seguinte pudessem se reencontrar.
Veio então a viagem dos pais de Sonja, iriam passar uma semana na Europa e contrataram uma governanta para manter a casa em ordem na ausência deles. Sonja nos seus dezoito anos não precisava realmente de uma babá, mas deixa-la sozinha tanto tempo era dar chances para arrependimentos futuros. Seus pais sabiam que há meses vinha namorando um rapaz, e dentro do possível mantinham-na à vista.
Tinham uma casa de campo onde em algumas ocasiões passavam uma temporada. Era uma mansão, como todas as residências daquela região. Era aconchegante quando havia clima para isso, com uma ampla área verde de quintal, vários quartos, piscina e todo conforto interno que a vida moderna pode propiciar. No entanto, sozinha com sua governanta naquele lugar, a situação era deprimente e Sonja tratou de combinar com Henrique uma forma de se encontrarem por lá durante esse período.
Sua governanta, uma senhora de idade avançada, era zelosa e atenciosa com suas obrigações. Mas não resistia acordada após o término da novela das 22 h.
Sonja contando com o “apagão” da governanta, estava animada e intimamente já havia reservado um dos quartos para a estadia de Henrique. Reserva essa apenas do conhecimento dos dois, a governanta a senhora Amália não iria em nenhum momento se importar com os demais quartos da mansão.
Estava tudo combinado, Henrique anotou o endereço, arrumou sua mochila, verificou se não estava esquecendo algum item essencial; -“escova de dentes, perfume, camisinhas, filmadora”, ia conferindo- e ligou em seguida para Sonja confirmando que chegaria lá no início da tarde do dia seguinte.
Sonja fora com seus pais naquele mesmo dia. Após verificarem que a mansão estava em perfeitas condições e darem os últimos conselhos, seguiram viajem rumo ao aeroporto, voariam em poucas horas.
Só havia uma companhia que atendia àquela região, e talvez mesmo por isso; sem concorrência, não disponibilizavam muitos horários por dia para o público que precisasse se deslocar até lá. Apenas dois ônibus por dia, e Henrique mofava na rodoviária pelo horário da partida. Ia chegar mais tarde do que planejara, mas não havia opção. Estava decidido a não se chatear por pequenos contra tempos.
Um pouco mais de três horas de viagem e parecia que estava em outro país. O cenário completamente diferente fora de imediato notado por Henrique. Uma vegetação fechada margeava a estrada já há vários quilômetros, eram raras as edificações visíveis, distando uma das outras em vários quilômetros. Naquele momento Henrique percebera que poderia ter problemas.
Ao chegar percebeu que tivera motivos para se preocupar, a parada era em uma pequena praça, nada de taxis ou outras linhas de ônibus disponíveis. Os poucos passageiros que haviam entrado com ele no início da viagem, foram descendo durante o transcorrer da mesma. Naquele ponto apenas restava ele e o motorista; tentou obter informações com ele, mas o mesmo sabia apenas o trajeto de ida e vinda, não ia além desse caminho, e após fazer uma pequena pausa para um café, enquanto dava tempo das pernas descasaram um pouco, volveu pelo mesmo caminho. O barulho do ônibus se afastando deixou Henrique desolado, por onde iria agora?
Súbito naquele silêncio a que fora deixado, o ruído de uma carroça se fez ouvir. Seguia um pouco mais acima, conduzida por um senhor idoso que devia apresentar algum nível de surdez, pois Henrique mesmo gritando não se fazia ouvir, teve de correr e se por à vista do condutor para que este parasse a carroça e lhe desse atenção.
Estava com sorte! O senhor conhecia bem aquela região, e lhe deu uma carona, até certo ponto iam no mesmo sentido. Aos gritos Henrique perguntava um pouco mais sobre a região; era a única forma de ser ouvido, e contente por saber agora como chegar à mansão de Sonja sentiu-se mais aliviado. Poderia mesmo relaxar e curtir a pequena viagem, não fosse o forte cheiro que vinha da carga transportada pela carroça. Havia uma lona que cobria o que quer que fosse, mas o odor forte que emanava da carga oculta dava a entender que era algum tipo de animal morto; um porco, um bode, mas nada que tirasse Henrique do bom humor, devia faltar pouco para chegar e era tudo o que queria.
Seguiram por quase uma hora naquele ritmo lento e chacoalhante. Então a carroça parou e com uma voz fraca da idade o cocheiro indicou que ali deveriam se separar; e assim o fizeram. Henrique tomou o pequeno caminho de terra à direita enquanto a carroça seu condutor e a velha mula continuaram em frente. Embora já houvessem se separados há vários minutos e o caminho de Henrique pendesse mais e mais para a direita, se afastando cada vez mais da estrada principal, o barulho trepidante da carroça ainda se fazia ouvir, tamanho era a desolação daquela região, nenhum outro barulho se ouvia. E sem perceber, apenas seus passos, depois de certo tempo, eram os únicos a perturbarem o mais profundo dos silêncios que Henrique já presenciara em sua vida.
A escuridão era total, Henrique havia alcançado o fim daquele caminho, estando agora diante de uma bifurcação sem a menor sinalização.
-Puta merda! –xingou consternado- E agora por onde vou? A porra do velho nem pra me dizer isso, que merda! –sentia-se perdido e precisava decidir logo por qual direção seguir.
Sua paciência já tinha lhe abandonado, mosquitos à sua volta pareciam não ter uma refeição há dias e então o estrondo de um trovão anunciou com poucos segundos de antecedência a iminente chuva que despencaria. – “Devia ser um eminente filho da puta para merecer isso!”- Pensou.
Decidira-se pelo caminho da esquerda, torcia para que estivesse certo e que não houvesse mais transversais a escolher. Nunca gostou de se molhar na chuva, mas pelo menos agora os mosquitos não o perturbavam mais. Melhor assim; além de um resfriado e de uma possível assadura na virilha, não ficaria todo encaroçado e com coceiras por todo o corpo. - Sonja também deveria achar o mesmo- Pensou.
Vários minutos depois, esgotado fisicamente e desejando um bom banho quente e uma cama macia onde se jogar, viu uma fraca claridade mais a frente. Tênue, camuflada pela vegetação que se interpunha, mas definitivamente era proveniente de uma lâmpada. Apressou o passo, abandonou o caminho em que seguia e traspassou uma densa muralha de mato que se interpunha em seu caminho. No escuro e ávido por chegar à soleira daquela edificação, ia se cortando pelo contato do mato com a sua pele e desta com a vegetação espinhenta no seu caminho. Sobrepujou esses obstáculos com determinação, e ofegante parou diante de uma velha e enferrujada grade que bloqueava a porta à sua frente.
Por ter vindo pelo mato, chegara à mansão pelos fundos. Então Henrique contornou a mansão pela lateral esquerda dirigindo-se à sua porta de entrada.
-Que fim do mundo Sonja foi arrumar pra passar estes dias! É um milagre que tenha energia elétrica, duvido que haja cobertura para celulares! – “Nem papai Noel deve ter coragem de aparecer por aqui.” – Pensou com ironia.
Já devia passar da meia-noite, Sonja e sua governanta já devem estar dormindo a essa hora, mas Sonja sabia que eu vinha, deve ter deixado uma chave em algum lugar aqui fora. – pensou.
Com cuidado, tentando não acordar ninguém, tateou pela chave sem sucesso. Instintivamente sua mão girou a maçaneta... e a porta estava apenas encostada. Entrou sorrateiramente, buscava encontrar um quarto onde pudesse se jogar, mas o interior da mansão era enorme, e Henrique nem sabia por onde seguir. Notou uma escadaria na parte central de uma das salas que entrara e rumou a ela. Alguns lances de degraus e estava no segundo piso defronte a um enorme corredor ladeado por inúmeras portas. Seguiu adiante, iria arriscar.
Ao toque dos seus passos o soalho rangia. Quase imperceptível, mas o suficiente para Henrique refrear seus passos, não queria ser ouvido, nem descoberto. Mas então o silêncio se rompera em um grito de pavor!
O coração de Henrique gelou, seu corpo ficou inerte, atordoado com aquele grito horrível que ecoou por toda a parte.
-Quem seria? O que estaria acontecendo? De onde vinha? – Dúvidas e receios povoaram a mente de Henrique, estava aterrorizado!
Os gritos retornaram! Agonizantes, desesperadores! Alguém, uma mulher; suplicava aos prantos, ao mesmo tempo em que seus gritos revelavam a dor a que estava sendo submetida!
Naquela mansão escura e vazia, aqueles gritos reverberavam uma áurea sinistra por todo o ambiente. A amplitude dos gritos era acentuada pela acústica daquelas salas fechadas, dando a impressão que se podia ouvi-los a quilômetros. Henrique tremia incontrolavelmente, o medo lhe paralisara por completo, sua boca seca parecia incapaz de pronunciar qualquer som.
Fortes estocadas se fizeram ouvir! Como machados golpeando um tronco... uma mesa, uma superfície qualquer de madeira! E o silêncio voltou a reinar por completo na mansão. Nada mais de prantos, de gritos. Então uma porta foi aberta com tanta força que dava a ideia da ira de quem a abrira! E então outra, e mais outra; e assim como que abrindo caminho pelas salas da mansão alguém vinha... cada vez mais se aproximava de Henrique, lívido mas que percebia a aproximação e que buscava sair daquele torpor aterrorizante.
O mesmo pavor que até então o enregelara, agora o impelira às carreiras escada abaixo! Em segundos já estava fora da mansão, e não parou de correr mais; não volveu uma única vez os olhos às suas costas. Já havia alcançado uma estrada, e se manteve correndo. O Sol já lhe batia às costas, esgotado Henrique se mantinha aos trôpegos, mas não parava. Assim se arrastando alcançou a pracinha onde desembarcara no dia anterior. Deixara-se desfalecer à sombra de um baobá.
Fora acordado pelo motorista que cobria aquela linha pela manhã. Ao descer do ônibus para tomar um pouco de chimarrão, o homem notara o corpo de Henrique pendido sobre as raízes do baobá. Suas feições cadavéricas de início assustaram o motorista, que pensou estar diante de um cadáver ali “desovado”.
Henrique agradeceu pelo chimarrão que lhe foi compartilhado. Quente, amarga, aquela bebida deu uma reanimada em Henrique. Em seguida aceitou o lanche todo do motorista, que comovido com o estado do seu único passageiro, perdera a fome por completo.
Na volta Henrique nada falara a viagem toda. Apenas queria voltar para casa, esquecer toda aquela aventura. Sonja teria que compreende-lo, ele não voltaria mais para aquelas bandas de jeito nenhum.
Menos de uma hora depois, no entanto, o ônibus parou. O motorista pediu a Henrique que aguardasse um pouco, e desceu. Minutos depois voltou acompanhado, trouxera um detetive com ele. Após relatar na delegacia aonde se dirigira o estado em que encontrara Henrique, o delegado pediu ao inspetor Santos que fosse investigar melhor o caso.
Santos estava para se aposentar, não fosse sua falta de estudo já poderia ser delegado há muitos anos. Trabalhara toda a vida naquela região e ele melhor do que ninguém para perscrutar o que quer que fosse em que Henrique estivesse metido.
O motorista temia que aquela linha pacata pudesse passar a ser rota do tráfico de drogas, era melhor cortar o mal pela raiz. Se Henrique estivesse limpo, não teria com o que se preocupar.
O inspetor Santos entrou sozinho, sentando do lado de Henrique. Se identificou e notando o aspecto acabado de Henrique teve a mesma impressão que tivera o motorista.
- Quanto mais rápido esclarecermos as coisas, melhor para nós dois. – Disse o inspetor.
Henrique o olhou nos olhos, respirou fundo algumas vezes, ajeitou-se no assento e começou a história bem pelo começo, da viagem dos pais de Sonja e dos planos que advieram depois.
Ao fim da narrativa o inspetor continuou por longo tempo fixando Henrique. Parecia agora entender os estragos que iam além dos que antes apenas os olhos haviam visto.
Ao descer do ônibus era esperado pelo delegado e por uma viatura com dois policiais, chamados na iminência de que haveria ali uma prisão; além do motorista e alguns curiosos que se acercaram do local.
-E então inspetor? – Indagou o delegado- Conseguiu a colaboração do nosso passageiro, ou vamos ter um hóspede conosco por uns dias?
O inspetor então pôs o delegado e todos ali que podiam ouvir à par da história ocorrida. O motorista desatou a gargalhar alto sem se conter com a história inventada por Henrique. Mas logo se calou diante da seriedade dos demais.
-Ah qual é? Esse cara deve ter cheirado mais do que devia! Se fizerem um exame de sangue dele vão ver que o cara curte uns cogumelos e coisas desse tipo! – Disse o motorista contra feito por não ter tido apoio na sua descrença.
O inspetor Santos resolveu então contar ao motorista uma história que poderia fazê-lo mudar de ideia.
- Quando entrei para o departamento de policia há quarenta e três anos, havia nesta região um serial killer, cujas vítimas eram esquartejadas a golpes de machado, e seus corpos aos pedaços eram empalados e deixados nesse estado no cume de uma chapada, onde apodreciam ao relento ou serviam de comida aos carniceiros que fossem atraídos pelo pútrido odor que dali emanava. Por anos caçamos esse assassino sem sucesso, sabíamos do desaparecimento das vítimas, mas seus corpos nunca eram encontrados. Buscas eram feitas nos arredores onde as vítimas eram vistas antes de sumirem; e nada, nunca uma única ossada fora achada. Não tínhamos suspeitos. Os anos seguiam e com eles novos desaparecimentos; mas nada de corpos.
- Então cinco anos depois do primeiro desaparecimento, uma equipe de turistas que fazia ecoturismo pelas florestas e chapadas desta região, ao acaso se depararam com as ossadas, com as estacas e um corpo ainda em decomposição; era da última vítima, cujo desaparecimento havia sido relatado apenas há dois dias. Tudo ali indicava que todos os desaparecidos tinham seus restos mortais ali despejados, com a exceção... das cabeças. Não havia um único crânio naquele cemitério a céu aberto.
- Não entendíamos como puderam ser transportados até aquele local, se a cada alarme de que alguém havia desaparecido, todos os carros eram revistados. Mas diante daquele cenário macabro, os sulcos no chão, marcados por rodas de carroça, foram a segunda grande pista que nos levou a elucidar todo o mistério.
- Um velho caquético que mal se aguentava, eximido de suspeitas, era quem transportava os corpos ocultos por lonas em sua carruagem. Ninguém se dava ao trabalho sequer de olhar para aquele pobre coitado, tinha livre circulação entre os postos de revistas.
- As investigações levaram a uma velha mansão, os rastros da carruagem a apontavam como o matadouro daquele assassino. Mais de vinte policiais cercaram o local, eu e outros cinco policiais entramos e vasculhamos a casa. Fomos surpreendidos por uma figura grotesca empunhando um machado e avançando em nossa direção. Devia ter quase dois metros de altura e exalava um cheiro de morte; mesmo a mais de vinte metros, antes de surgir no corredor marchando contra nós, seu odor já nos enojava antecipando sua presença.
_ Ordenamos que parasse, dei um tiro de advertência; ele veio inalterado na sua gana de nos atacar, com passos largos logo estaria sobre nós.
- Tudo depois foi muito rápido e quase nem tivemos como reagir de forma diferente. O velhote da carroça, vira o cerco e escutara os gritos e toda a gritaria; saiu de umas portas laterais às pressas, tentando de proteger aquela criatura, demove-la de nos atacar. Mas sua aparição fora bem entre nós e o brutamontes, no justo instante em que havíamos feito os disparos! Os dois se chocaram, as balas vararam a ambos que caíram mortos; o brutamontes sobre o velhote. Era tão pesado, que depois a autópsia revelou que o velhote morrera por traumatismo craniano e asfixia, e não pelos ferimentos das balas.
- Os crânios de todas as vítimas foram encontrados num dos cômodos, dispostos como troféus numa estante. As investigações depois esclareceram que eram pai e filho, mas ninguém na vizinhança nunca tinha visto ou sabido do filho do velhote.
- De lá pra cá, tivemos vários relatos de pessoas que afirmavam terem visto o velhote em sua carroça por estas bandas. Nunca foram levadas a sério, não haveria como! Consideramos sensacionalismo. Até... bem, até que um dia relendo as queixas mais incomuns registradas na delegacia, percebi a estranha coincidência entre todos aqueles relatos. Todos relatavam suas visões exatamente nas mesmas datas! Conferi cada um dos registros, e todas as aparições do velhote aconteciam em 27 de janeiro de cada ano; a mesma data de ontem.
- O relato desse jovem dentro do ônibus é o primeiro a incluir a possível presença do brutamontes nessa lenda. Digo possível, porque ele não chegou de fato a vê-lo; mas relatou uma presença, que dentro da lenda seria a do grandão.
-Antes de sair do ônibus, liguei para o comando aéreo e pedi que informassem qualquer coisa estranha na Chapada 6, aquela onde os corpos foram encontrados. Como eles todos os dias fazem voos nas rondas, sugeri que incluísse essa chapada na primeira ronda. Já devem ter sobrevoado por lá a estas horas.
Quando o inspetor terminou o motorista não tinha mais aquele humor inicial, seu riso debochado deu lugar a uma carraca sisuda, entrou no ônibus e disse:
- Sei que se for justificar meu atraso na rodoviária, junto ao fiscal com essa história, estou na rua! Então inspetor, se ligarem perguntando sobre algum acidente por aqui, vê se me quebra essa hein?
Henrique só queria voltar pra casa, sentia-se melhor agora. Ao ver o motorista fechar a porta e dando a partida no veículo, respirou aliviado. –“Casa! Lá vamos nós!”- Pensou. Recostou-se melhor na poltrona e ia tentar adormecer quando...
A sirene da viatura policial chamou a atenção do motorista que freou de imediato o ônibus. Pelo retrovisor pôde ver a movimentação em sua direção. Abriu a porta dianteira por onde o inspetor Santos entrou às pressas.
- Sr. Henrique! O Sr. terá que vir conosco! O Helicóptero do comando aéreo acaba de sobrevoar a Chapada 6 e confirma a presença de um corpo empalado, com partes esquartejadas ao seu redor, sem no entanto, um retorno positivo para a presença de um crânio no local. Até que esclareçamos tudo, o Sr. agora é uma testemunha do departamento de homicídios!